Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações da BBC News Brasil)
A gravidez de uma menina de 10 anos, vítima de estupro, dominou as atenções no Brasil nos últimos dias. A interrupção da gestação foi realizada legalmente no domingo (16), mas houve quem protestasse contra o procedimento e divulgasse dados da criança, que sofreu uma revitimização. O caso acabou por acender um debate sobre aborto no país e lançou um olhar mais atento à violência sexual contra crianças e adolescentes.
A menina relatou que sofria abusos sexuais do tio desde os 6 anos de idade. O criminoso foi preso na terça-feira (18). Dias antes, por não atender aos critérios exigidos pelo Ministério da Saúde, o hospital em Vitória, no Espírito Santo, não pôde realizar o procedimento, e a menina teve de ser transferida para uma unidade em Recife, em Pernambuco.
No fim de semana, o local se tornou campo de batalha. Um grupo, baseado principalmente em preceitos religiosos, se opôs ao direito legal da menina de realizar a interrupção gestacional terapêutica. Vídeos deram conta de agressões verbais aos profissionais de saúde presentes. Outro grupo foi ao local com o objetivo de manifestar apoio à menina e a seu direito de interromper a gravidez.
O caso não é um fato isolado. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2019, a cada hora quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil. Também ocorrem seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos, vítimas de estupro. Os dados oficiais reúnem desde procedimentos feitos em hospitais até internações após abortos espontâneos ou realizados sem acompanhamento médico.
Outro levantamento, da BBC News Brasil a partir do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde – SUS, revela média de seis abortos por dia de meninas de 10 a 14 anos. O país registra também uma média anual de 26 mil partos de mães na mesma faixa etária.
Diversas formas de violência
"No lugar onde deveriam achar amparo, as crianças são vitimadas pelas mais diversas formas de violência", define a advogada e professora Joyceane Bezerra de Menezes, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Com base nas conclusões do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ela atenta que o agressor costuma ser uma pessoa próxima, por vezes membro da família da vítima, como no caso ocorrido no Espírito Santo.
A advogada aponta que, geralmente, a criança vítima de estupro sofre variados abusos em segredo por anos, temendo a concretização de ameaças feitas pelo criminoso. "Em uma trama de abuso e violência, arrastará, por toda a vida, o peso das ofensas físicas e psicológicas daquele que deveria protegê-la", observa Joyceane.
A revitimização acentua ainda mais o problema. "O calvário se agudiza quando a vítima de um abuso tão cruel se vê transformada em algoz, como corriqueiramente acontece. Não é incomum o discurso 'Ela deve ter facilitado... '. Se um tal destino é terrível para uma mulher adulta, quiçá para uma criança totalmente indefesa. Em absoluto descaso por sua dor, vozes mansas e raivosas se unem para lhe impor uma gravidez que seu corpo miúdo nem pode suportar", comenta a advogada.
Realidade próxima da distopia
A advogada vê a realidade dos nossos dias cada vez mais próxima à distopia apresentada pela escritora canadense Margaret Atwood em seu livro O Conto da Aia (1985), best-seller transformado em série de TV. "As mulheres, inclusive as impúberes, são vistas como 'úteros de duas pernas, apenas isso: recepta?culos sagrados, ca?lices ambulantes'", avalia.
Joyceane lembra que a clínica especializada em Recife realizou, recentemente, uma intervenção semelhante em outra vítima de estupro de apenas 9 anos. "Todos foram julgados e condenados por parte da opinião pública, mesmo quando àquelas meninas assistia o direito de abortar (posto que vítimas de estupro) e aos profissionais, o direito/dever de realizar o procedimento em prol da saúde e da vida das miúdas."
Ela explica que, desde 1940, o Código Penal Brasileiro autoriza o chamado "aborto necessário", quando a gravidez resulta de estupro ou causa grave risco de morte à mãe (artigo 128, incisos I e II). "Portanto, a menina tinha o acesso legal à alternativa tão fundamental ao seu desenvolvimento, à sua saúde e à sua dignidade. Se o processo judicial que culminou com a autorização do procedimento foi demorado e o cumprimento da decisão foi dificultado, a conta não deve recair, mais uma vez, no lombo franzino dessa menina", defende Joyceane.
Atente-se: casos de anencefalia também dão direito legal ao aborto no Brasil, de acordo com decisão do Supremo Tribunal Federal – STF de 2012. A Portaria 1.508, de 2005, do Ministério da Saúde, dispensa a necessidade de boletim de ocorrência para realização do procedimento em casos de estupro. O Código Penal, conforme o artigo 217-A, enquadra como estupro de vulnerável qualquer situação em que um adulto tiver "conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos".
O fator social também revela grande impacto na repercussão do caso, de acordo com a advogada. "Arrisco dizer que se se tratasse de uma criança de família abastada, o procedimento teria sido feito sem alvoroço e sem qualquer exposição à sua pessoa. Eis aí um exemplo em que os diversos fatores de discriminação se entrecruzam, somando maior dificuldade ao gozo dos direitos", observa.
Desrespeito à proteção integral da criança
"Essa menina capixaba que tem um nome e uma identidade a serem preservadas, teve a honra chacoalhada pelos fiscais da moral – ávidos, não raro, por votos nas próximas eleições. Mas é bom lembrar que, nos termos da lei, ela é sujeito de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e goza da proteção integral que lhe deferem o ECA e os documentos internacionais", frisa Joyceane.
Tal proteção implica o dever da família, da comunidade, da sociedade e do poder público em assegurar às crianças e adolescentes "todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade", conforme os artigos 3º e 4º do ECA.
"Não se intente condenar a criança, que é vítima, ou os médicos que realizaram o procedimento, em nome da defesa da vida do feto. No cotejo dos seus direitos com a tutela jurídica atribuída aos nascituros, o legislador brasileiro já realizou a ponderação na década de 1940, há quase um século, positivando a descriminalização do aborto em casos como esse", frisa Joyceane.
Ela destaca que é imprescindível garantir à criança o direito de viver a sua infância em paz e com a proteção devida. "Àqueles que colecionam opiniões duras, inflexíveis, pautadas em uma moral coletiva impiedosa e hipócrita, dê-se o tempo e a estrada da vida para que, no sofrimento pessoal, possam alcançar alguma empatia. Quanto aos irmãos cristãos, vale a releitura do Sermão do Monte", recomenda.
Link para consulta: IBDFAM